O inferno existe: o próprio Deus nos revelou sua existência


05.03.2009 - O Inferno
Mons. de Ségur (Extraído do site Permanência - Gentileza Cecilia)
PREFÁCIO Breve de S. S. S. P. Papa Pio IX para o autor
Pio IX, Papa

Meu filho bem amado, Saúde e Benção Apostólica

De todo o coração, felicitamo-vos por vosso incessante trabalho, numa tão grande escala e com tanto êxito, no ofício de arauto do Evangelho. Tudo quanto publicais espraia-se com rapidez nas camadas do povo por meio de milhares de exemplares. Evidentemente, para que vossos escritos sejam assim cobiçados, é preciso que agradem; e não agradariam, se não possuíssem o dom de conciliar os espíritos, de penetrar até ao âmago dos corações, e de produzir em cada um deles os benfazejos efeitos.

Ponde pois em obra a graça que DEUS vos concedeu; continuai a trabalhar com ardor, cumprindo vosso ministério de evangelização.
Quanto a Nós, da parte de DEUS vos prometemos excelente assistência, pela qual podereis iniciar nas vias da salvação um número de almas cada mais largo, e forjar-vos uma magnífica coroa de glória.

Na oportunidade, como fiança do celeste favor e demais dons do Senhor, recebei a Benção Apostólica que Nós vos damos com imenso amor, meu filho bem amado, para testemunhar Nossa paternal estima.

Dado a Roma, próximo a São Pedro, a 2 de março de 1876, trigésimo ano de Nosso Pontificado.

PIO IX, Papa.

PRÓLOGO

Fora em 1837. Dois jovens subtenentes, recém-saídos de Saint-Cyr, visitavam os monumentos e curiosidades de Paris. Entraram na igreja da Assunção, perto de Tulherias, e puseram-se a observar os quadros, as pinturas e demais detalhes artísticos da bela rotunda. Não pensavam em rezar, de modo algum.

Próximo ao confessionário, um deles notara um jovem padre de sobrepeliz, adorando o Santíssimo Sacramento. “Vê bem este padre, disse a seu camarada; dir-se-ia que espera alguém. – Talvez a ti, respondera o outro. – A mim! E por que tal? – Quem sabe? Para confessar-te, talvez. – Confessar-me! Pois bem, queres apostar que vou para lá? – Tu? Ir confessar? Bah!” E puseram-se a rir, sacudindo as espáduas.

“Que queres tu apostar? retorquiu o jovem oficial, com aspecto fanfarrão e decidido. Apostemos um jantar, com direito a champanha espumante. – Vá para comer e beber. Eu te desafio de entrar naquela caixa.”

Acabara de dizer isso quando o outro, dirigindo-se ao jovem padre, sussurra algo em sua orelha; ele levantou-se, entrou no confessionário, enquanto o penitente improvisado lançava ao camarada um olhar triunfante e se ajoelhava, como se fosse confessar.

“Esse aí é atrevido!”, murmurou o outro; e sentou-se para assistir ao que ia acontecer.

Esperara cinco minutos, dez, quinze. “Que ele está fazendo? perguntava-se com leve e impaciente curiosidade. Que poderia ele ainda estar falando depois desse tempo todo?”

Finalmente, abriu-se o confessionário: o padre saiu, animado o rosto e grave; depois de saudar o jovem militar, entrara na sacristia. A seu turno, levantou-se o oficial, vermelho como um camarão, cofiando o bigode com aparência um tanto conturbada; fez sinal para que o amigo o seguisse, para saírem da igreja.

“Pois então, disse o amigo, que foi que te aconteceu? Saibas que ficaste lá cerca de vinte minutos com o padre. Por um instante pensei que fosses te confessar à vera, é sério. De qualquer modo, ganhaste o jantar. Queres para esta noite? – Não, respondeu o outro com mau humor; não, hoje não. Vamos ver um outro dia. Tenho mais que fazer; tenho de ir agora.” Apertando a mão do companheiro, afastou-se bruscamente, com aspecto perturbado.

Que se passou, de fato, entre o subtenente e o confessor? Eis aqui:

Mal abrira o padre a rótula do confessionário, percebera pelo tom do jovem que se tratava duma brincadeira. Este fora impertinente até ao ponto de dizer, ao encerrar uma frase qualquer: “Eu faço pouco da religião e da confissão!”

O padre era homem espiritual. “Parai um pouco, meu caro senhor, lhe disse interrompendo-o com candura; bem vejo que não estais a levar a sério. Deixemos a confissão um pouco de lado e, se quiserdes, conversemos um instante. Gosto muito de militares. E além disso, me pareces tu um rapaz bom e afável. Dizei-me, qual é vossa patente?”

O oficial começava a pensar que cometera uma estupidez. Contente de encontrar um meio de se livrar da situação, respondeu educadamente: “Sou um mero subtenente. Acabo de sair de Saint-Cyr. – Subtenente? Permanecereis muito tempo como subtenente? – Não sei direito; uns dois, três anos, talvez quatro. – E depois? – Depois? Passarei para tenente? – E depois? – Depois? Serei capitão. – Capitão? A que idade um pessoa pode ser capitão? – Se eu tiver sorte, disse o outro sorrindo, serei capitão com vinte oito ou vinte nove anos. – E depois? – Oh, aí é difícil; a pessoa permanece muito tempo como capitão. Depois, passa-se a chefe de batalhão, a tenente-coronel, e depois, coronel. – Pois bem, eis aí vós coronel, com quarenta, quarenta e dois anos. E depois disso? – Depois? Tornar-me-ei general de brigada, e aí general de divisão. - E depois? E depois? - Só fica faltando um galão para marechal. Mas minhas pretensões não chegam a tal. – Seja; mas não pretendeis vos casar? – Claro, claro. Quando for oficial superior. – Pois bem, eis-vos casado, oficial superior, general, general de divisão, quem sabe até mesmo marechal de França. E depois, senhor? acrescentou o padre com autoridade. – Depois? Depois? replicou o oficial um tanto intrigado. Oh, minha nossa, não sei o que virá depois.”

“Vede como é curioso, disse o padre com um tom cada vez mais grave. Sabeis tudo o que se passará até aí, mas não o que virá depois. Contudo, eu o sei, e vou dizer-vos. Depois, senhor, depois o senhor morrerá. Depois da vossa morte, comparecereis diante de Deus, e sereis julgado. E a continuar a fazer o que fazeis, sereis condenado e queimareis eternamente no inferno. Eis o que vai acontecer depois!”

Como o jovem estivesse confuso e aborrecido deste final, parecia esquivar-se: “Um momento, senhor! acrescentara o padre. Tenho ainda algo a vos dizer. Tendes honra, não é verdade? Pois então, também eu. Zombastes de mim gravemente; me deveis uma reparação. Peço-vo-la, e exijo-a, em nome da honra. Ademais, será bem simples. Vais me dar a palavra de que, durante oito dias, todas as noites antes de se deitar, vos poreis de joelhos e direis em alta voz: “Um dia, morrerei; mas eu faço pouco disso. Depois de meu julgamento, serei condenado; mas eu faço pouco disso. Irei queimar eternamente no inferno; mas eu faço pouco disso.” É só isso. Mas me dareis a palavra de honra de não faltar ao dever, não é?

Cada vez mais aborrecido, querendo a todo custo sair da enrascada, o subtenente prometeu tudo; o bom padre despedira-o com bondade, falando ainda: “Escusado dizer, meu bom amigo, que vos perdôo de coração. Ainda que de mim não tivesses necessidade, sempre me encontraríeis aqui a postos. Somente não vos esqueceis da palavra dada.” Mais a frente, despediram-se, como já víramos.

O jovem oficial jantou sozinho. Estava claramente envergonhado. À noite, no momento de se deitar, hesitou um pouco; mas dera a palavra, e executara-se:

“Eu morrerei, serei julgado, irei talvez para o inferno...”. Não teve coragem de acrescentar: “Eu faço pouco disso.”

Ainda se passaram alguns dias assim. Sua “penitência” retornava-lhe ao espírito sem cessar, parecia-lhe tinir aos ouvidos. No fundo, como noventa e nove por cento dos jovens, ele era mais confuso que mau. Não havia terminado a oitava, e lá estava ele de volta, desta vez só, na igreja da Assunção, confessando-se de boa vontade; saiu do confessionário com o rosto banhado em lágrimas e alegria no coração.

Desde então, tornou-se, como me asseguraram, um digno e fervoroso cristão.

Fora a meditação sobre o inferno que, com a graça de Deus, operou a metamorfose. Ora, se ela mudara a alma do jovem oficial, por que não mudaria a vossa, amigo leitor? É preciso refletir com sinceridade.

É preciso refletir: é uma questão pessoal - como se não fosse - e, acrediteis, terribilíssima. Ela se impõe a cada um de nós, e, de bom ou mau-grado, forçoso é uma solução positiva.

Iremos, se vós o quiserdes, examinar juntos, breve mas cuidadosamente, duas coisas: 1º se de fato existe um inferno e, 2º que é o inferno.

Aqui faço apelo tão-só à vossa boa fé e a vossa fé.
EXISTE VERDADEIRAMENTE UM INFERNO?
O inferno existe: em todos os tempos, acreditaram nisso os povos.

Em todos os tempos, a crença constante dos povos se constitui o que se denomina verdade do senso comum, ou, se preferirdes, do sentimento comum, universal. Quem se recusasse admitir quaisquer das grandes verdades universais não teria, como com justiça se diz, senso comum. É preciso ser louco para imaginar que uma pessoa pode ter razão contra o mundo inteiro.

Ora, em todos os tempos, desde o começo do mundo até nossos dias, creram os povos no inferno. Sob um ou outro nome, sob formas mais ou menos modificadas, receberam, conservaram e proclamaram a crença das punições terríveis, infinitas, com a presença constante do fogo para expiação dos malvados, depois da morte. O inferno é uma certeza estabelecida luminosamente pelos grandes filósofos cristãos, cuja demonstração é por assim dizer supérflua.

Desde o começo, tem-se notícia da existência dum inferno de fogo eterno, consignado com clareza nos livros mais antigos e conhecidos do mundo – os livros de Moisés. Notai bem, só os cito aqui sob o ponto de vista puramente histórico. Até o nome inferno encontra-se ali, com todas as letras.

Deste modo, no décimo sexto capítulo do livro de Números, vemos os três levitas, Coré, Datan e Abirão, que blasfemaram o nome de DEUS e se revoltaram contra Moisés: descederuntque vivi in infernum; e o fogo, ignis que o Senhor mandou sair dos abismos, devorou duzentos e cinqüenta rebeldes.

Ora, Moisés escrevia isto a mais de mil e seiscentos anos antes do nascimento de Nosso Senhor, i. é, há quase três mil e quinhentos anos.

No Deuteronômio, diz o Senhor, pela boca de Moisés: “Acendeu-se o fogo em minha cólera e os ardores penetraram até as profundezas do inferno, et ardebit us que ad inferna novissima.” No livro de Jó, igualmente escrito por Moisés, conforme o testemunho de sábios preclaríssimos, os ímpios, cuja vida transborda de bens, e dizem a DEUS: “Não temos necessidade de vós, não queremos nos subjugar a vossa lei; de que serve servir e rezar a vós!”, retomando, estes ímpios “caem direto no inferno, in puncto ad inferna descendunt.”

Jó denomina inferno “a região das trevas, a região mergulhada nas sombras da morte, a região da infelicidade e das trevas, onde não há ordem de espécie alguma, mas onde reina o horror eterno, secs sempiternus horror inhabitat.” Tudo bem, são testemunhos mais que respeitáveis, e que remontam às origens histórica antiquíssimas.

Mil anos antes da era cristã, quando ainda se não interpunham a história grega nem romana, falavam amiúde Davi e Salomão do inferno como uma grande verdade, assim conhecida e reconhecida de todos, de que não havia mister de demonstração. No livro dos salmos, dentre outras coisas dizia Davi, falando dos pecadores: “Arrojem-nos no inferno, convertantur peccatores in infernum. Confundam os ímpios e precipitem-nos no inferno, et deducantur in infernum.” Em outro passo, fala das “dores do inferno, dolores inferni.”

Salomão também é claro. Ao se referir aos ímpios que desejam seduzir e perder o justo, diz: “Devorai-os enquanto vivos, como no inferno, sicut infernus.” E nesta notória passagem do Livro da Sabedoria, em que ele descreve admiravelmente o desespero dos condenados, acrescenta: “Eis o que bradam no inferno, in inferno, os pecadores; pois a esperança do ímpio se dissipa como fumaça ao vento.”

Num outro seu livro, denominado o Eclesiástico, escreve ainda: “A multidão dos pecadores é como um amarrado de estopa, cujo fim derradeiro é a flama de fogo, flamma ignis; ei-los, os infernos, e as trevas, e as penas, et in fine illorum inferi, et tenebrae, et poenae.”

Dois séculos mais tarde, mais de oitocentos anos antes de JESUS CRISTO, o grande profeta Isaías por sua vez declarava: “Como despenhaste do alto dos céus, ó Lúcifer? Tu que repetias a teu coração: ‘Subirei até ao céu, e serei semelhante ao Altíssimo’, vê-te precipitado no inferno, no profundo do abismo, ad infernum detraheris, in profundum laci.” Neste abismo, neste misterioso “lodaçal” veremos mais à frente como se deve entender a terrível massa líquida de fogo que a terra abriga e esconde, e que a Igreja indica como sítio do dito inferno. Salomão e Davi também falavam deste abismo ardente.

Noutra passagem de suas profecias, fala Isaías do fogo, fogo eterno do inferno. “Os pecadores, dizia ele, são tomados de terror. Quem dentre vós pode habitar no fogo devorador, cum igne devorante, em meio a flamas eternas, cum ardoribus sempiternis?”

Vivendo duzentos anos após Isaías, o profeta Daniel declarou, ao falar da ressurreição dos mortos e do julgamento: “Levantar-se-á a multidão dos que dormem nas cinzas, uns para a vida eterna, outros para o opróbrio sem fim.”

Parte de outros profetas o mesmo testemunho, até ao precursor do Messias, São João Batista, que também fala ao povo de Jerusalém do fogo eterno do inferno, enquanto verdade de todos conhecida, e de que ninguém jamais duvidou. “Eis o Cristo que se aproxima, exclama ele. Ele vai joeirar os grãos: recolherá o frumento (os eleitos) nos seus celeiros; já a palha (os pecadores), ele a queimará no fogo inextinguível, in igne inextinguibili.”

Igualmente, conta-nos a antigüidade pagã, grega e latina, do inferno e de seus horríveis e infinitos tormentos. Sob formas mais ou menos corretas, conforme a distância maior ou menor dos povos das tradições primitivas e dos ensinamentos dos patriarcas e profetas, sempre se depara com a crença no inferno, um inferno de fogo e trevas.

Era assim o Tártaro de gregos e latinos. “Os ímpios, que desprezaram as leis santas, precipitam-se no Tártaro para nunca mais sair, para sofrer tormentos horrendos e eternos”, afirma Sócrates, citado pelo discípulo Platão.

Revestiram-no Homero e Virgílio das cores de suas imortais poesias. Quem não lera a narração de Eneás descendo aos infernos, onde, sob o nome de Tártaro, de Plutão etc., reencontramos as grandes verdades primitivas desfiguradas, contudo conservadas pelo paganismo? Ali são eternos os suplícios dos maus; um dos quais nos é descrito como “acorrentado no inferno eternamente.”

O primeiro a contestar essa crença universal, incontestável e incontestada é, reconhecidamente, o filósofo céptico Bayle. Seu confrade em voltairianismo e impiedade, o inglês Bolingbroke afirma-o com semelhante fervor. Diz, sem rebuços: “A doutrina acerca dum estado futuro de recompensa e punição parece se perder nas trevas da antigüidade; precede ela a tudo que é de conhecimento certo. Desde que começamos a desenredar o caos da história antiga, deparamo-nos com tal crença, solidificada ao extremo no espírito das primeiras nações de que se tem notícia.”

Encontramos seus destroços até entre as superstições informes dos selvagens da América, da África e da Oceania. O paganismo da Índia e da Pérsia lhe conserva vestígios impressionantes, e finalmente, o maometismo tem o inferno na relação de seus dogmas.

No seio do cristianismo, é escusado dizer que o dogma do inferno ensina-se à miúdo, qual essas verdades fundamentais que fundam o edifício da religião. Até os protestantes, aqueles que destruíram tudo com a louca doutrina do “livre exame”, não ousaram tocar no inferno. Coisa inaudita, inexplicável! Em meio a tantas ruínas, Lutero, Calvino e outros deixaram de pé a temível verdade, que não obstante lhes devia ser pessoalmente importuna!

Por isso, os povos, em todos os tempos, conheceram e reconheceram a existência do inferno. Por isso, o dogma terrível faz parte do tesouro das grandes verdades universais, que se erige como a luz da humanidade. Por isso, não é possível ao homem sensato de negá-la na dúvida ao afirmar, afogado na demência do orgulho ignorante: não existe inferno!

Por isso, enfim: existe um inferno.

O inferno existe: não se inventou
nem se poderia inventar o inferno.


Acabamos de ver que, em todos os tempos, acreditaram os povos no inferno. Só isso já prova que não é ele invenção humana.

Suponhamos um instante o mundo vivendo em tranqüilidade, em meio aos prazeres, abandonado sem temor às paixões. Num certo dia, um homem, um filósofo, vem-lhe dizer: “Existe um inferno, um lugar de tormentos eternos, onde DEUS vos punirá se continuardes a perpetrar o mal; inferno de fogo, onde queimareis sem descanso, caso não mudeis de vida.”

Tendes em consideração o efeito que produziria tal notícia?

A princípio, não lhe acreditariam. “Que vindes vós lá a pregar? diriam a este inventor do inferno. Onde soubestes disto? Que provas trouxestes para nos mostrar? Não passais dum sonhador, dum profeta da desgraça.” Repito-o, não lhe acreditariam.

Não lhe acreditariam, pois que no homem corrompido tudo se volta instintivamente contra a idéia do inferno. Da mesma maneira que o culpado afasta tudo quanto lhe relembre a idéia de punição, de igual modo e com força centuplicada, afasta o homem culpado a perspectiva do fogo vingador, eterno, que deve punir com tamanha impiedade as suas faltas, inclusive as secretas.

Sobretudo numa sociedade em que alguém jamais ouviu falar do inferno, como supomos, juntar-se-ia a revolta dos preconceitos â revolta das paixões. Não se limitariam a desacreditar o inventor impertinente, mas caçá-lo-iam coléricos, lapidá-lo-iam, de tal modo que não ocorreria mais a ninguém vontade de recomeçar a pregação

Se, numa impossibilidade, dessem fé a esta estranha ivenção; se, numa impossibilidade ainda mais evidente, pusessem-se os povos a crer no inferno, apoiados na palavra do sobredito filósofo, como aconteceu tal, pergunto-vos eu! Não estariam consignados na história o nome do inventor, o século, o país onde teria vivido?

Ora, nada disso se deu. Jamais se assinalou quem tivesse introduzido no mundo esta doutrina terrível, contrária às paixões mais enraizadas no espírito, na alma e nos sentidos humanos.

Logo, não inventaram o inferno. Não inventaram, porque não poderiam fazê-lo.

A razão não pode compreender o dogma da eternidade das penas, do inferno; ela não pode conhecer, mas não compreender, porque está acima da razão. Como quereis que o homem invente algo que não pode compreender?

A razão se insurge contra o inferno justamente porque a razão não pode compreender o inferno, o inferno eterno, desde que não fora revelado e esclarecido pelas luzes sobrenaturais da fé. Conforme veremos adiante, clama a razão contra a injustiça, contra a barbárie, e por conseguinte contra a impossibilidade.

O dogma do inferno é aquilo que se denomina “uma verdade inata”, i. é, uma dessas luzes de origem divina que nos alumia, mesmo à contragosto; ela jaz, no fundo da consciência, incrustado nas profundezas da alma qual um diamante negro, que luz um brilho sombrio. Não há quem possa desincrustá-lo, pois que fora o mesmo DEUS que o pôs lá. Não se pode encobrir esta pedra e sua flama sombria; no máximo, desviar o olhar e esquecê-lo por um tempo, negá-lo com palavras, mas a crença ainda permanece, e consciência não pára de proclamá-lo.

No fundo, os ímpios que menoscabam o inferno têm-lhe um medo terrível. Mentem a si e aos outros os que afirmam já demonstrada a inexistência do inferno. Consiste antes numa aposta ímpia da alma que numa negação racional do espírito. No último século, um desses insolentes escrevia a Voltaire haver descoberto a prova metafísica da inexistência do inferno: “Sois bem-aventurado, lhe respondera o velho patriarca dos incrédulos; estou eu ainda mui longe disso.”

Não, o homem não inventou o inferno. Não o inventou, e não poderia inventá-lo. Remonta a DEUS o dogma do inferno eterno de fogo. É parte da grande revelação primitiva, base da religião e da vida moral do gênero humano.

Logo, existe um inferno.


O inferno existe:
o próprio Deus nos revelou sua existência

As tantas passagens do Antigo Testamento citadas acima já demonstram que DEUS revelou aos patriarcas, aos profetas e à antiga Israel o dogma do inferno. De feito, são mais que testemunhos históricos; são ainda e sobretudo testemunhos divinos a dirigirem a fé e a se imporem à consciência, com a autoridade infalível das verdades reveladas.

Nosso Senhor JESUS CRISTO confirmou solenemente esta revelação pavorosa: por catorze vezes no Evangelho fala-nos do inferno.

Aqui, não citaremos todas as suas palavras, para não enfadar. As principais, ei-las. Não esqueçais, meu caro leitor, que é DEUS quem fala e diz: “Céu e terra passarão, mas minha palavra não passará.”

Pouco depois da admirável transfiguração sobre o monte Tabor, dizia Nosso Senhor a seus discípulos e às multidões que o seguiam: “Se vossa mão (i. é, o que tens de mais precioso) é para vós ocasião de pecado, cortai-a: é melhor entrar na vida maneta, que ir com ambas ao inferno, para o fogo inextinguível e que jamais cessará.”

“Se vosso pé ou vosso olho é para vós ocasião de queda, cortai-o, arrancai-o e jogai-o para longe de vós: é melhor entrar na vida eterna perneta ou caolho, que ser lançado com ambos os pés ou ambos os olhos, na prisão de fogo eterno, in gehennam ignis inextinguibilis, onde haverá sempre remorso e o fogo é inextinguível, et ignis non extinguitur.”

Conta do que se passará no final dos tempos, dizendo: “Então o Filho do Homem enviará seus anjos, e pegarão os que tiverem cometido o mal, para lançá-los na fornalha de fogo, in caminum ignis; onde haverá choro e ranger de dentes. Quem tem ouvidos para escutar, escute”.

Quando predisse o Filho de Deus o julgamento final, no capítulo vinte e cinco do evangelho de São Mateus, dá-nos a conhecer antecipadamente com que termos pronunciará a sentença dos réprobos: “Retirai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, discedite a me, maledicti, in ignem aeternum”. E acrescenta: “E irão estes para o suplício eterno, in supplicium aeternum”. – Pergunto-vos, há algo mais claro?

Encarregados pelo Salvador de desenvolver a doutrina e completar as revelações, os apóstolos também nos falam explicitamente do inferno e das chamas eternas.

Para citar apenas algumas palavras, recordemos São Paulo que aos cristãos de Tessalônica escreve, ao pregar o julgamento final, que o Filho de DEUS “vingar-se-á dos ímpios, que não quiserem reconhecer DEUS e obedecer o Evangelho de Nosso Senhor JESUS CRISTO, nas chamas de fogo, in flamma ignis; na morte sofrerão as penas eternas, longe da face do Senhor, poenas dabunt in interitu aeternas”.

Conta o apóstolo São Paulo que os perversos partilharão do castigo dos anjos maus, a quem precipitou o Senhor nas profundezas do inferno, nos suplícios do Tártaro, rudentibus inferni detractos in Tartarum tradidit cruciandos”. Apoda-os “filhos da maldição, maledictionis filli, a quem se reservou os horrores das trevas”.

Igualmente fala São João do inferno e do fogo eterno. Ao discorrer sobre o Anticristo e de seu falso profeta, diz: “Serão lançados vivos no abismo abrasador de fogo e enxofre, in satagnum ignis ardentis sulphure, para aí sofrer tormentos dia e noite pelos séculos dos séculos, cruciabuntur die ac nocte in saecula saeculorum”.

Finalmente, por sua vez o apóstolo São Judas fala do inferno, exibindo-nos os demônios e os réprobos “acorrentados pela eternidade nas trevas, padecendo as penas do fogo eterno, ignis aeterni poenam sustinentes”.

Ao longo das epístolas inspiradas, os apóstolos repisam incessantemente o temor do julgamento de DEUS e das punições eternas que se guardam para os pecadores impenitentes.

Depois de ensinamentos inequívocos, é de se espantar que a Igreja apresente a eternidade das penas e do fogo do inferno como dogma de fé propriamente dito? de modo que quem ousa negá-lo, ou dele duvidar somente, seria por isso mesmo herege.

Logo, a existência do inferno é artigo de fé católica, estando nós tão certos de sua existência quanto da de DEUS.

Logo, existe um inferno.

Em suma: o testemunho do gênero humano como um todo, em suas mais antigas tradições; o testemunho da natureza humana, da direita razão de alma e consciência e, acima de tudo, o testemunho do ensinamento infalível de DEUS e de sua Igreja, unem-se para atestar, com certeza absoluta, que existe um inferno de fogo e trevas, inferno eterno, para punição dos ímpios e dos pecadores impenitentes.

Caro leitor, pergunto-vos se uma verdade pode se estabelecer de forma mais peremptória?


Se o inferno realmente existe,
por que ninguém voltou de lá?


Antes do mais, o inferno existe para punir os réprobos, e não para deixá-los retornar a terra. Quando se está lá, lá se fica.

Dissestes vós que não retornam de lá? Na ordem habitual da Providência, é verdade. Contudo, estais seguro de que ninguém voltou do inferno? Tendes certeza de que, enquanto misericordioso e justo, DEUS jamais permitira a um danado aparecer sobre a terra?

Na Santa Escritura e na história, faz-se prova em contrário: e, por mais supersticiosa que seja, seria inexplicável a crença quase comum naqueles que se denominam “os retornados”, se não proviesse dum fundo de verdade. Permiti-me contar-vos aqui alguns casos, cuja autenticidade se nos parece evidente, provando a existência do inferno através do testemunho dos que aí estão.

O doutor Raymond Diocrès

Na vida de São Bruno, fundador da Cartuxa, depara-se um fato que os doutíssimos Bolandistas estudaram a fundo, e que perante a crítica mais circunspecta apresenta todas as características históricas de autenticidade: deu-se em Paris, em pleno dia, na presença de milhares de testemunhas; os contemporâneos recolheram os detalhes do fato, que ocasionou o nascimento duma grande ordem religiosa.

Um célebre doutor da Universidade de Paris, chamado Raymond Diocrès, acabara de morrer, levando consigo a admiração universal e as lamentações dos alunos. Era o anos de 1082. Um dos mais sábios doutores do tempo, insigne na Europa por sua ciência, talentos e virtudes, de nome Bruno, estava então em Paris com mais quatro companheiros, fazendo a vênia de assistir aos obséquios do ilustre defunto.

Haviam deposto o corpo no salão da chacelaria, próximo à igreja de Notre-Dame, onde assomava grande massa de gente a cercar o féretro em que, conforme o uso do tempo, se expunha o morto, coberto por singelo véu.

No momento em que se terminava de ler uma das lições do Ofício dos Mortos, que assim começa: “Respondei-me. Quão grandes e numerosas são vossas iniqüidades”, uma voz sepulcral partiu de sob o véu funeral, sendo escutada por toda a assistência: “Por um justo julgamento de DEUS, fui eu acusado”. Precipitaram-se em direção ao corpo, e levantaram a mortalha: lá estava o pobre morto, imóvel, gelado, perfeitamente morto. Depois da interrupção, logo retomaram a cerimônia; o estupor paralisava a assistência, penetrada de temor.

Continuaram o ofício; chegaram a sobredita lição “Respondei-me”. Desta vez, à vista de todos, o morto se levantou, e com voz mais possante, mais acentuada, disse: “Por um justo julgamento de DEUS, fui julgado”, e cai. O terror no auditório atingiu o cume. Novamente médicos constataram a morte. O cadáver estava frio, rígido. Ninguém teve coragem de continuar, por isso se retomou ofício no dia seguinte.

Não sabiam que fazer as autoridades eclesiásticas. Uns diziam: “É um réprobo, indigno das orações da Igreja”. Outros respondiam: “Não, o fato está mergulhado em terrível dúvida; mas, enfim, nós que aqui estamos, não seremos um dia acusados primeiro, e depois julgados por um justo julgamento de DEUS?” O bispo era dessa opinião e, no dia seguinte, recomeçara o serviço fúnebre na mesma hora. Bruno e seus companheiros estavam lá, como na véspera. A Universidade em peso, toda a Paris acorreu para Notre-Dame.

Recomeçou o ofício. A mesma lição: “Respondei-me”, e o corpo do doutor Raymond acomoda-se sobre um assento, e com indescritível acento, que gelou de terror a platéia, afirmou: “Por um justo julgamento de DEUS, fui condenado”, caindo imóvel.

Desta vez, não havia dúvida. O que o terrível prodígio constatou à evidência era incontestável. De ordem do bispo e do capítulo, despojou-se durante a sessão o cadáver das insígnias e dignidades, transladando-o para o caminho de Montfaucon.

À saída do salão da chancelaria, Bruno, com cerca de 45 anos de idade, decidiu deixar o mundo, de uma vez por todas, buscando junto aos companheiros, nas solidões da Grande Cartuxa, próximo a Grenoble, um retiro onde pudesse com mais certeza se salvar, preparando-se assim, à vontade, para o julgamento de DEUS.

Eis aí um “réprobo” voltando do inferno, não para sair, antes para se constituir na mais incontestável das testemunhas.
O jovem religioso de Santo Antonino

O preclaro bispo de Florença, Santo Antonino, conta num de seus escritos um fato terrível que, por todo o séc. XV, atemorizou o norte da Itália. Um rapaz de boa família que, por volta dos dezesseis ou dezessete anos, teve a infelicidade de esconder pecado mortal na confissão e de comungar neste estado, adiara semana após semana, mês após mês, a confissão penosíssima dos sacrilégios, continuando de resto suas confissões e comunhões, por causa dum miserável respeito humano. Transtornado pelo remorso, buscava entorpecer-se com grandes penitências, de sorte que passava por santo. Não podendo a maceração ir além, entrou no monastério. “Aí, pelo menos, dizia-se ele, eu confessarei tudo, e expiarei à vera meus horrendos pecados”. Para sua desgraça, os superiores, que lhe conheciam de reputação, o acolheram como a um santo, e a vergonha mais uma vez meteu-se por baixo dos panos. Adiou a confissão para mais tarde; redobrou as penitências, e assim um, dois anos se passaram neste estado deplorável, sem que ele ousasse revelar o peso medonho e vergonhoso a esmagá-lo. Finalmente, uma doença mortal lhe parecia facultar os meios. “Desta vez, vou confessar tudo, dizia-se ele, na confissão geral antes de morrer”. Mas como o amor próprio manietava o arrependimento, ele arrevesou tanto a confissão das faltas, que o confessor não conseguiu entender coisa alguma. Tinha um vago desejo de retornar ao ponto no outro dia, mas sobreveio um acesso de delírio, e o desgraçado morreu neste estado.

Na comunidade, onde ignoravam a horrível realidade, entrediziam-se: “Se este não foi para o céu, quem de nós poderá entrar?” E esfregavam sobre suas mãos cruzes, rosários e medalhas. Levaram o corpo com certa veneração para a igreja do monastério, e permaneceu exposto até o dia seguinte no coral, onde se deveriam celebrar os funerais.

Momentos antes da hora marcada para a cerimônia, um dos irmãos, encarregado de tanger o sino, notou logo a sua frente, próximo ao altar, o defunto envolto em cadeias que pareciam abrasadas de fogo, e seu corpo inteiro como a incandescer. Assustado, o pobre monge caiu de joelhos, olhos fitos na horripilante aparição. Foi quando o réprobo disse: “Não rezeis por mim. Estou no inferno por toda a eternidade”. E contou a lamentável história da sua má vergonha e de seus sacrilégios, depois do quê desapareceu, deixando após si um odor infecto, que se espalhou no monastério, uma como certidão da verdade do que o irmão terminara de ver e escutar.

Tão logo alertados, mandaram os superiores suspender o cadáver, julgando-o indigno de sepultura eclesiástica.

A cortesã de Nápoles

São Francisco de Girolamo, célebre missionário da Companhia de Jesus no início do séc. XVIII, estava encarregado de comandar as missões do reino de Nápoles. Um dia, enquanto pregava numa praça da cidade, algumas mulheres de má vida, que lá estavam às instâncias duma delas, chamada Catarina, perturbavam contumazes o sermão com cantigas e bulhentas exclamações, com o fim de forçar o padre a se retirar; mas ele continuara o discurso, fazendo como se não percebesse as insolências.

Algum tempo depois, tornou a falar no mesmo lugar. Viu a porta de Catarina fechada e toda a sua casa, de ordinário barulhenta, mergulhada em profundo silêncio. “Pois bem, disse o santo, que aconteceu a Catarina? – Não sabe o padre o que passa? Ontem à noite morreu a desgraçada, sem conseguir pronunciar palavra. – Catarina morreu? respondeu o santo; morreu de repente? Entremos e vejamos.

Uma pessoa abriu a porta; o santo sobe a escada e entra, seguido duma multidão, na sala em que estava estendido o cadáver sobre um lençol, com quatro velas, conforme o uso da região. Observou-a por um tempo com olhos espantados; depois, solene, disse: “Catarina, onde estais vós agora?” Permaneceu mudo o cadáver. Retomou o santo: “Catarina, onde estais vós agora?” Ordeno-vos me dizer onde estais.”

Então, para maior espanto de todos, os olhos do cadáver se abriram, os lábios estremeceram convulsos, e uma voz cava e profunda respondeu: “No inferno! Estou no inferno!”

A estas palavras, a massa dos presentes assustada fugiu, e desceu com eles o santo, a repetir: “No inferno! Ó DEUS terrível! No inferno! Escutastes bem? No inferno!”

Foi tão viva a impressão do prodígio, que um bom número das testemunhas não ousaram voltar ao lar sem antes se confessar.

O amigo do conde Orloff

No século atual, tomamos conhecimento de três acontecimentos do mesmo gênero, uns mais autênticos que os outros.

Deu-se o primeiro no seio de minha família.

Foi em Moscou, Rússia, logo antes da horrível campanha de 1812. Meu avô maternal, o conte Rostopchine, governador militar de Moscou, tinha estreitos laço com o general conde Orloff, célebre em bravura, só comparável a sua impiedade.

Um dia, depois duma sopa leve, regada de copiosas libações, o conde Orloff e um de seus amigos, o general V., como ele voltairiano, puseram-se a escarnecer da religião e sobretudo do inferno, com execrandos termos. “Se por acaso, disse Orloff, se por acaso houver mesmo algo do outro lado da cortina?.. – Pois sim! retrucou o general V., quem de nós ir para lá primeiro retornará para advertir o outro. Combinado? – Excelente idéia!”, respondeu o conde Orloff, e ambos, ainda que um tanto entorpecidos, deram com gravidade a palavra de honra de não faltar ao compromisso.

Algumas semanas mais tarde, estourou uma grande guerra, daquelas que Napoleão tinha então o dom de instigar; entrou em campanha o exército russo, e o general V. recebera a ordem de partir de imediato para aprisionar um oficial importante.

Já havia deixado Moscou umas duas ou três semanas, quando numa manhã, bem cedinho, enquanto meu avô se empertigava no toucador, a porta do quarto se abriu num átimo. Era o conde Orloff, de roupão de quarto, empantufado, cabelos arrepiados, olhos esbugalhados, pálido como se morto. “Que! Orloff, você a esta hora? e trajado desta maneira? Que lhe deu no bestunto? Que aconteceu? – Meu caro, responde o conde Orloff, acho que enlouqueci. Há pouco vi o general V.. – O general V.? Ele já voltou? – Não, não! desabafou Orloff, e jogou-se sobre o canapé, segurando a cabeça com as mãos, ele não voltou, e é isso que me assusta!”

Meu avô ficou sem entender. Buscava acalmá-lo. “Conte-me, lhe disse ele, o que se deu com você, que isto tudo quer dizer”. Então, esforçando-se para dominar a emoção, o conde Orloff contou o que se segue:

“Meu caro Rostopchine, há algum tempo, V. e eu juramos um ao outro que o primeiro a morrer retornaria para dizer se existe algo do lado de lá da cortina. Ora, esta manhã, no máximo a meia hora atrás, estava eu tranqüilo na minha cama, já algum tempo acordado, pensando em qualquer coisa, quando num instante as duas cortinas da cama abriram-se bruscamente, e então eu vi, a dois passos de mim, o general V. de pé, exangue, com a mão direita sobre o peito, a dizer-me: ‘Existe um inferno, e eu estou nele!’, e desapareceu. Logo após, vim aqui. Minha cabeça esta estourando! Que coisa estranha! Não sei mais que pensar!”

Aquietou-o meu avô como pôde. Não era tarefa fácil. Falou de alucinações, de pesadelos, talvez dormisse. De que existem muitos fatos extraordinários, inexplicáveis, e trivialidades deste jaez, que são as consolações dos espíritos fortes. Então, mandou aprestar os cavalos e reconduziu o conde Orloff a hospedaria.

Passados dez ou doze dias desse estranho incidente, o mensageiro do exército trazia a meu avô, entre outras novidades, a da morte do general V.. Na manhã em que o conde Orloff o vira e escutara, na mesma hora em que o general lhe apareceu em Moscou, o desinfeliz general, numa atalaia de reconhecimento ao inimigo, teve o peito varado por uma bala, e caiu morto na hora!...

“Existe um inferno, e eu estou nele!”. Aqui as palavras de alguém que “voltou de lá”.

A senhorinha da pulseira de ouro

Em 1859, contei esse fato a um distinto cura, superior duma comunidade importante. “É temível, me disse ele, mas não me surpreende muito. São mais comuns do que se pensam acontecimentos desse tipo; o que há é que existe mais ou menos interesse em contá-los, seja em honra do “retornado”, seja em honra de sua família. De mim, vede o que eu soube de fonte confiável, há uns dois ou três anos, dum parente próximo à pessoa com quem se deu o fato. Neste momento em que vos falo (Natal de 1859), esta senhorinha ainda vive; tem ela pouco mais de quarenta anos.”

“No inverno de 1847 e 1848, estava ela em Londres, viúva, vinte nove anos, mundaníssima, riquíssima e muito aprazível de rosto. Entre os janotas que freqüentavam seu salão, distinguia-se um rapaz lorde, cujas assiduidades e conduta pouco edificante comprometiam-na em muito.

“Uma noite, ou melhor, uma madrugada (já passava da meia-noite), ela estava lendo na cama não sei que romance, na busca do sono. Soou uma hora no pêndulo, e ela bocejou. Ia já dormir quando, para seu maior espanto, notou um clarão baço, estranho, que parecia vir da porta do salão, alastrando-se a pouco e pouco pelo quarto, aumentando a cada instante. Estupefata, esbugalhou os olhos, desentendida do que se passava. Começava a se amedrontar, quando viu abrir-se lentamente a porta do salão e entrar no quarto o rapaz lorde, cúmplice de suas desordens. Antes que lhe pudesse dirigir palavra – ele estava próximo a ela – o lorde lhe pegou o braço esquerdo no punho e, com voz estrídula, disse-lhe em inglês: “existe um inferno!”. Perdeu ela a consciência, tamanha a dor que sentiu no braço.”

“Quando voltou a si, uma meia hora depois, soou pela criada de quarto. Esta sentiu ao entrar um cheiro forte de queimado; aproximando-se da ama, que mal podia falar, constatou no punho uma queimadura tão profunda, que os ossos estavam expostos e a carne quase toda consumida: a queimadura media-se pela mão dum homem. Além disso, deu-se conta de que, da porta do salão até a cama, e da cama até a mesma porta, imprimira-se no tapete os passos dum homem, que queimara a trama de lado a lado. Por ordem da ama, abriu a porta do salão. Mais impressões sobre o tapete.”

“No dia seguinte, a infeliz senhorinha soube, com um terror fácil de se entender, que naquela noite, por volta de uma da manhã, seu lorde deparou-se com uma morte embriagada durante um ágape; os criados arrastaram-no para o quarto, onde expirou entre seus braços.”

“Ignoro, acrescentou o superior, se a terrível lição converteu em fiel a infortunada; mas o que eu sei é que ela ainda vive; mas para disfarçar aos olhares as marcas da queimadura sinistra, ela carrega no punho esquerdo, fazendo as vezes duma pulseira, uma grande arrecada de ouro, que usa sempre, dia e noite.”

“Repito-o, obtive os pormenores dum parente próximo, cristão de lei, a cuja palavra dou inteira fé. Não se fala do caso na família; e eu mesmo só conto esta história ocultando seu nome.”

Mau-grado os véus com que cercaram esta aparição, parece-me impossível afastar-lhe a autenticidade. Certamente, não é para a senhorinha da pulseira que se deve provar a existência real do inferno.

A marafona de Roma


No ano de 1873, poucos dias antes da festa da Assunção, deu-se em Roma uma destas aparições terríveis d’além-túmulo, que corroboram e afiançam a verdade do inferno.

Numa casa de tolerância, que só funcionou ali e em outros lugares devido ao enfraquecimento do domínio temporal do Papa, uma menina desaventurada cortou a mão, tendo de ser levada ao Hospital da Consolação. Seja por causa do sangue viciado na libertinagem, levando à degenerescência do ferimento, seja por causa duma complicação inesperada, certo é que ela morreu subitamente durante a noite.

No mesmo instante, uma de suas companheiras, que com certeza nada sabia do que acontecia no hospital, pôs-se a soltar gritos desesperados, a ponto de acordar os moradores do bairro, de causar balbúrdia nos miseráveis habitantes daquela casa, e de provocar a intervenção policial. A morta do hospital apareceu-lhe engolfada nas chamas, dizendo-lhe: “Estou condenada; se tu não quiseres ficar como eu, sai deste lugar de infâmia e retorna a DEUS, a que tu abandonaste”.

Nada pôde conter o desespero e o terror da mulher, que fugiu durante o arrebol da manhã. Deixara para trás a casa mergulhada em estupor, quando souberam da morte no hospital.

Neste entrementes, a cafetina do lugar, uma garibaldina exaltada e conhecida como tal por seus irmãos e amigos, ficou doente. Logo, pediu que chamassem o padre da igreja vizinha, São Julião de Banchi. Antes de adentrar aquele lugar, o venerável padre consultou a autoridade eclesiástica, que delegou para este efeito um digno prelado, Mons. Sirolli, cura da paróquia de Santo Salvador in Lauro.

Munido de instruções, monsenhor se apresentou e exigiu da doente, em primeiro lugar, e na presença de várias testemunhas, a completa e inteira retratação dos escândalos de sua vida, das blasfêmias contra a autoridade do Soberano Pontífice, e de todo o mal que cometera contra outrem. Fê-lo sem hesitar, a infeliz, confessou e recebeu o Santo Viático, com profundos sentimentos de arrependimento e humildade.

Sentindo a morte, suplicara com lágrimas ao bom padre para não abandoná-la, assustada que estava com tudo aquilo que se passara sob suas vistas. Mas a noite se aproximava, e Monsenhor Sirolli, dividido entre a caridade, que lhe dizia para ficar, e as conveniências, que lhe davam como dever não passar a noite num lugar daqueles, requisitou à polícia dois agentes, que, após chegarem, fecharam a casa e permaneceram até que a agonizante tivesse dado o último suspiro.

Logo Roma inteira conheceu os detalhes dos trágicos acontecimentos. Como sempre, os ímpios e os libertinos escarneceram de tudo, tomando o cuidado de não coletar informações; os bons aproveitaram para se tornarem melhores e mais fiéis a seus deveres.

Diante de tais fatos, cuja lista poder-se-ia alongar demasiado, pergunto ao leitor de boa fé se é razoável repetir, junto com a multidão dos levianos, a conhecida expressão esterotipada: “Se realmente existe um inferno, por que ninguém voltou de lá?”

Mas ainda que, de bom ou mau grado, não queiram admitir os fatos, autênticos todavia, que acabei de contar, permanece inabalável a certeza absoluta da existência do inferno. De fato, a fé no inferno não se baseia em prodígios – que não são de fé – mas em raciocínios do bom senso que vimos de expor, e acima de tudo, no testemunho divino, infalível, de JESUS CRISTO, dos profetas e dos apóstolos, assim como do ensinamento oficial, invariável, inviolável, da Igreja Católica.

Os prodígios talvez corroborem com a fé e a vivifiquem, e por isso tínhamos como dever citar alguns deles, muito a propósito para calar a boca dos que ousam dizer: “Não existe inferno”, e também confirmar na fé os que talvez se dissessem: “Existe um inferno?”, e finalmente, consolar e esclarecer mais ainda os bons fiéis que, junto com a Igreja, declaram: “O inferno existe”.

Tradução:
Permanência,
terminada no dia da Visitação de Nossa Senhora
(31 de maio)

Fonte: www.recados.aarao.nom.b


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